Entrevista
especial com Valquíria Smith
“Boa
parte da agricultura familiar e camponesa do Brasil vive na região do
semiárido, por isso precisamos pensar políticas públicas adequadas de
desenvolvimento dessas famílias”, diz a coordenadora executiva da ASA, em Minas
Gerais.
Confira a entrevista.
“Há 12 ou
15 anos, o olhar que a sociedade brasileira tinha sobre o semiárido era o de um lugar de terra
rachada, de seca, de pessoas morrendo e migrando para outros locais”, diz Valquíria
Smith à IHU On-Line. Apesar de a região continuar marcada
por “contradições”, foi possível reafirmar “um olhar de que o semiárido não é
isso. O semiárido é uma região de inúmeras potencialidades, que tem uma
agricultura familiar e camponesa forte, viva, que resiste e que aprende a
conviver com a seca, que é um fenômeno da natureza”, assinala.
Na
entrevista a seguir, concedida por telefone, Valquíria reconhece
que a convivência dos sertanejos com o semiárido está melhor, mas enfatiza que
o acesso à água continua sendo um desafio. “Hoje, a política de acesso à água
para as famílias do semiárido é pensada através de grandes projetos e transposições
de água, mas pensamos que é necessário investir em tecnologias que possam ser
difusas, simples e baratas, como as cisternas de captação de água da
chuva”. E acrescenta: “Essa mudança pode parecer muito simples para quem não
conhece a realidade do semiárido, mas é uma mudança vital e significativa na
vida dessas pessoas que andavam em média quatro ou cinco quilômetros por dia
para conseguirem água para beber”.
A seca
atual, considerada a mais intensa dos últimos 30 anos, “mostra que muitas
famílias estão passando diversas dificuldades não só por falta de água para o
consumo humano, mas falta de água para a produção de alimentos”, informa. Para
propor alternativas e garantir a convivência dos sertanejos com o semiárido,
a ASA promove o VIII Encontro Nacional da Articulação no Semiárido –
EnconASA, em Januária, a 169 quilômetros de Montes Claros,
região norte Minas Gerais. Entre os dias 19 e 23, cerca de 600 pessoas, vindas
de várias partes do Sertão e Agreste nordestino, discutirão alternativas para
garantir a convivência no semiárido. Segundo Valquíria, o evento
pretende “mais uma vez colocar em pauta esse debate e discutir políticas
públicas adequadas para a região”.
Valquíria Smith é coordenadora executiva da ASA pelo
estado de Minas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto histórico surgiu a Articulação no
Semiárido Brasileiro – ASA e qual sua proposta para o semiárido?
Valquíria Smith – A ASA surgiu em 1999, quando aconteceu
uma conferência das Nações Unidas, que discutiu o combate da desertificação,
pensando o semiárido brasileiro. Neste encontro estavam reunidos chefes de
Estados, que pensaram políticas públicas para essa região. À época, a ASA
organizou um encontro paralelo, com organizações da sociedade civil que já
atuavam no semiárido, para propor ações de convivência com o semiárido.
Lançamos, na ocasião, a declaração do semiárido, com as bases para debater a
convivência com a região. Ali nasceu a proposta do programa Um Milhão de Cisternas,
que pretendia acolher um milhão de famílias do semiárido brasileiro com cisternas
de captação de água de chuva para o consumo humano. Entendíamos que qualquer
ação para pensar um projeto de desenvolvimento para o semiárido brasileiro
passava pelo acesso à água.
IHU On-Line – Qual a proposta do VIII EnconASA no que se refere à
discussão acerca da convivência com o semiárido?
Valquíria Smith – Depois de doze anos de
existência da ASA, que une atualmente mais de
três mil organizações da sociedade civil, sindicatos, igrejas, ONGs,
pretendemos retomar as discussões sobre a convivência com o semiárido brasileiro,
as trajetórias de lutas e resistência para a superação da pobreza e a
construção da cidadania. Nós queremos mais uma vez colocar em pauta esse debate
e discutir políticas públicas adequadas para a região, tal como o debate da
água, da terra, das sementes, da soberania e segurança alimentar, de uma
assistência técnica adequada para a região, de acesso ao mercado, de economia
solidária, financiamento, crédito, fundo solidário, direito das mulheres,
educação, comunicação popular.
IHU On-Line – Qual a atual situação do semiárido brasileiro? Dizem que
essa é a maior seca dos últimos 30 anos.
Valquíria Smith – Boa parte da agricultura familiar e camponesa do
Brasil vive na região do semiárido, por isso precisamos pensar políticas
públicas adequadas de desenvolvimento dessas famílias. Entretanto, hoje nos
deparamos com uma série de contradições, especialmente no campo. Ao mesmo tempo
em que a ASA defende propostas de desenvolvimento sustentável, solidário, onde
a água e a terra possam ser democratizadas, para que as famílias possam ter uma
agricultura familiar diversificada, com bases na agroecologia, ainda nos
deparamos com um modelo de desenvolvimento que se contrapõe a tudo isso.
O agronegócio,
o hidronegócio, a monocultura do eucalipto, a mineração, os grandes projetos de
transposição das águas são contradições do semiárido que geram exclusão,
concentração de água, de terras. O encontro da ASA irá abordar essas questões.
IHU On-Line – Como as populações do semiárido brasileiro convivem com a
seca e com as demais características do semiárido? O que mudou ao longo desses
12 anos?
Valquíria Smith – Sem sombra de dúvidas, a ASA contribuiu
para o debate sobre o acesso à água, inclusive para que a distribuição se
tornasse uma política pública apoiada pelo governo federal, pelos governos
estaduais e municipais. Isso foi significativamente importante para a mudança
da qualidade de vida dessas famílias.
Hoje, a
política de acesso à água para as famílias do
semiárido é pensada através de grandes projetos e transposições de água, mas
pensamos que é necessário investir em tecnologias que possam ser difusas,
simples e baratas, como as cisternas de captação de água da chuva. A construção
de novas cisternas têm democratizado significativamente o acesso à água das
famílias do semiárido brasileiro. Essa mudança pode parecer muito simples para
quem não conhece a realidade do semiárido, mas é uma mudança vital e
significativa na vida dessas pessoas que andavam em média quatro ou cinco
quilômetros por dia para conseguirem água. No momento em que uma família tem
água para o consumo humano e para produzir seus alimentos, reafirmamos que o
semiárido é uma região com várias potencialidades e possíveis políticas
públicas adotadas.
A ASA
também contribuiu no sentido de fazer com que a sociedade brasileira olhasse
para o semiárido. Há 12 ou 15 anos, o olhar que a sociedade brasileira tinha
sobre o semiárido era o de um lugar de terra rachada, de seca, de pessoas
morrendo e migrando para outros locais. Reafirmamos um olhar de que o semiárido
não é isso. O semiárido é uma região de inúmeras potencialidades, que tem uma
agricultura familiar e camponesa forte, viva, que resiste e que aprende a
conviver com a seca, que é um fenômeno da natureza.
IHU On-Line – Como está o projeto Um milhão de cisternas? A má
distribuição de água ainda é um agravante que atinge o semiárido?
Valquíria Smith – Com certeza. Essa seca mostra
que muitas famílias estão passando diversas dificuldades não só por falta de
água para o consumo humano, mas falta de água para a produção de alimentos. O
programa Um Milhão de Cisternas se tornou uma política
pública do governo federal, que reconhece existir uma demanda de construção de
1,2 milhões de cisternas de captação de água de chuva. Hoje, mais ou menos 700
famílias ainda precisam ser atendidas no semiárido brasileiro. Os projetos de
acesso à água precisam continuar sendo uma prioridade da política pública
brasileira. É preciso orçamento, previsão orçamentária para fortalecer todos os
debates de acesso à água para as famílias do semiárido brasileiro.
IHU On-Line – A partir da universalização das cisternas de 16 mil litros
de água para consumo humano, qual é o novo desafio da ASA e do governo brasileiro
em relação ao semiárido?
Valquíria Smith – O acesso à água ainda tem
desafios. Ao mesmo tempo em que o governo investe em políticas públicas de
apoio a cisternas de captação de água da chuva, e tecnologias de armazenamento
de água de chuva para a produção de alimentos, ainda nos deparamos com grandes
barragens, com grandes obras, com tecnologias que não são adequadas para
resolver o problema de acesso à água no semiárido brasileiro.
Também
existe um grande desafio no que se refere ao acesso à terra. O semiárido
brasileiro não é só uma região que concentra água, mas também uma região que
concentra terra. O acesso à terra, seja via reforma agrária, seja pelo reconhecimento
das comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, ainda não foi resolvido,
e ele é fundamental para melhorar a qualidade de vida e fortalecer a
agricultura familiar e camponesa. Também são fundamentais políticas de soberania,
de segurança alimentar, de distribuição de sementes.
IHU On-Line – Qual é a proposta da ASA para garantir a convivência com o
semiárido a partir do uso de sementes crioulas? Essa proposta pretende diminuir
o uso de agrotóxicos? Já tem algum projeto em andamento?
Valquíria Smith – O uso de agrotóxicos no
semiárido, assim como em outras regiões do Brasil, existe. Por isso alertamos
as famílias que têm trabalhado com a ASA sobre a importância do desenvolvimento
de um novo modelo baseado na agroecologia. Algumas famílias já adotaram o
modelo de produção agroecológico, mas outras estão em transição, e muitas
famílias precisam de formação para repensar o modelo de produção.
Ao longo
desses 12 anos, a ASA tem incentivado o uso de sementes crioulas e há
experiências positivas na Paraíba, Alagoas, no Ceará. O uso de sementes
crioulas favoreceu o intercâmbio e trocas entre as famílias.
IHU On-Line – Quais os limites das políticas de superação da pobreza e
miséria no Brasil? Como vê os programas de distribuição de renda como o Bolsa
Família?
Valquíria Smith – Esse é um tema que podemos
discutir com o governo. Entendemos que esses programas também são uma forma de
distribuir renda no Brasil. Não podemos negar isso. Esses programas causaram um
impacto positivo nas famílias do semiárido. Obviamente, podemos criticá-los por
não serem a melhor forma de distribuição de renda, mas não podemos parar por
aí. Tais programas não irão por si resolver os problemas estruturais que essas
famílias enfrentam. Por isso discutimos ações estruturantes de mudança de
qualidade de vida, que perpassam pelo debate sobre a terra, a água, a educação,
a alimentação, a soberania de segurança alimentar, o acesso a mercados,
financiamentos, créditos, diversos conjuntos de ações que de fato possam
melhorar a qualidade de vida dessas famílias e fazer com que se supere a pobreza e
se construa a cidadania.